O Jogo Cognitivo entre Leitura e Escuta no Uso das Escrituras em comunidades indígenas
- Rodrigo Tinoco

- 18 de jul.
- 4 min de leitura
Rodrigo Tinoco
2025-07
Nas terras que hoje chamamos Brasil, centenas de povos indígenas guardam modos próprios de aprender, ensinar e transmitir saberes que entrelaçam memória, ritual, canto, grafismo, território e muitos outros modos. Contudo, desde o século XVI a escrita ocidental foi imposta como critério de legitimidade, rebaixando tradições orais e deslocando saberes nativos para as margens. Este artigo reconhece essa trajetória de desequilíbrio e propõe integrar, de forma equitativa, a “leitura baseada em texto” e a “escuta de tradição oral”, abrindo caminho para que ambas fortaleçam a compreensão comunitária da “Palavra de Deus”.
1- O “Uso das Escrituras”
Nos últimos anos tenho explorado o “Uso das Escrituras” por meio da “Bíblia em Áudio”, atuando tanto em culturas de tradição escrita quanto em culturas de tradição oral e, sobretudo, em todo a escala que liga esses dois polos. Descrever essa realidade nasce da convicção de que isso nos ajuda a servir melhor as pessoas que acompanhamos, permitindo-lhes compreender de forma mais profunda a “Palavra de Deus”.
2- A “escuta de tradição oral”
Para evitar reducionismos, empregamos as expressões “leitura baseada em texto” e “escuta de tradição oral”. Elas ampliam o sentido de “ler” e “ouvir”, abrangendo o processo cognitivo completo: apreensão, interpretação e integração do novo conhecimento.
3- O sistema cognitivo
Quando empregamos o termo sistema cognitivo, estamos apontando para um arcabouço mental que, ao longo dos últimos quinhentos anos, foi calibrado pelo prestígio da leitura e pelos paradigmas ocidentais de aprendizagem. Esse letramento colonial se reflete, por exemplo, na América Latina: Povos originários/indígenas foram historicamente pressionadosa aceitar de que suas próprias terras não lhes pertenciam simplesmente porque não possuíam um documento carimbado que atestasse juridicamente a posse.
4- A Formalidade percebida
Durante o ajuntamento de pessoas nós as convidamos para acessar a “Palavra de Deus”. Ao anunciarmos que as pessoas realizarão uma leitura baseada em texto, o sistema cognitivo aciona o modo formal: espera-se estrutura, análise detalhada e registro duradouro. O suporte escrito funciona como selo de seriedade, conferindo ao conteúdo o estatuto de conhecimento “oficial”. Em contraste, quando o aprendizado ocorre por meio de escuta de tradição oral, o mesmo sistema tende a classificar a experiência como informal: contexto relacional, ritmo narrativo, memória auditiva — ainda rica, mas percebida como menos rígida ou certificável.
5- Implicação: o estudo da Bíblia sempre foi percebido como algo formal
Isso quer dizer que, ao longo da história, a comunidade cristã vinculou a busca sistemática da Escritura a procedimentos rigorosos, verificáveis e socialmente reconhecidos. Contudo, quando passamos a trabalhar simultaneamente com leitura baseada em texto e escuta de tradição oral surge a necessidade de explicitar o que significa “formal” em cada polo. Em outras palavras, devemos mostrar que a seriedade metodológica não depende apenas do suporte (escrito ou falado), mas de como estruturamos a experiência de aprendizagem.
6- O que pode ser “formal” na leitura baseada em texto
- Leitura exegética guiada - O participante recebe um plano de estudo do Evangelho de João, incluindo divisão por perícope, referências cruzadas, glossário de termos originais e espaço para anotações críticas. A atividade prevê entrega de um resumo analítico ao final de cada semana.
- Devocional estruturado com registro escrito - O grupo utiliza um caderno de trabalho oficial (impresso ou digital) com perguntas fechadas e abertas sobre o Salmo 23. Cada sessão exige que o aluno sublinhe, destaque e anote aplicações práticas, que serão partilhadas em uma rodada de feedback documentado.
7- O que pode ser “formal” na escuta de tradição oral
- Audição sequencial com roteiro de discussão - A classe ouve, em formato dramático, todo o livro de Atos em quatro encontros. Após cada bloco, o facilitador conduz uma pauta fixa de perguntas (observação, interpretação, aplicação) e coleta respostas em formulários padronizados.
- Recitação responsorial seguida de avaliação - Num encontro comunitário, dois participantes recitam alternadamente o Sermão do Monte (Mateus 5–7) a partir de memória auditiva treinada. O restante do grupo utiliza um quadro de critérios (fidelidade ao texto, clareza, entonação) para avaliar e registrar observações, culminando em um relatório coletivo.
Esses exemplos mostram que a formalidade não se limita ao ato de ler silenciosamente um texto impresso; ela pode (e deve) estender-se à oralidade sempre que introduzirmos intencionalidade pedagógica, instrumentos de verificação e espaços de reflexão sistemática.
8- Conclusão — Escuta de tradição oral no centro do caminho
A escuta de tradição oral não é um complemento opcional, mas o meio primordial de encontro com a Palavra para a maioria dos povos indígenas. Ao recuperar esse lugar de honra, repararmos uma história em que o escrito foi imposto como única via legítima de saber. Por isso, daqui em diante, todo programa de “Uso das Escrituras” precisa partir da oralidade, e só depois dialogar com a leitura baseada em texto.
Compromissos práticos para facilitadores
a- Planejar primeiro a experiência sonora — escolha traduções gravadas, dramatizações e momentos de recitação coletiva antes de imprimir qualquer caderno de estudos.
b- Formalizar a oralidade — use roteiros de perguntas, quadros de avaliação e arquivos de áudio como registros verificáveis, mostrando que rigor cabe também no ouvido.
c- Celebrar a comunhão que nasce da escuta — rodeie o fogo, circule a palavra, cante as Escrituras; a compreensão profunda floresce em comunidade, não em solidão.
Quando damos esse passo, não perdemos a precisão do texto escrito; ganhamos uma comunidade que sente, lembra e vive a mensagem. Assim, a Palavra deixa de ser letra distante e volta a pulsar no ritmo das vozes que a pronunciam — mantendo-se viva na mente, no coração e nas práticas do povo.



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